Análise publicada em forma de ensaio científico nos Cadernos de Saúde
Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e assinado por pesquisadoras de
unidades da fundação e do Núcleo de Pesquisas Urbanas da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (Uerj) diz que a desigualdade no acesso a direitos básicos
como saúde, saneamento e trabalho tornou a população negra e periférica mais
vulnerável à pandemia de Covid-19, desmentindo ideia inicial de que as
consequências da doença seriam igualmente sentidas na sociedade.
O ensaio tem como principal autora a pesquisadora Roberta Gondim, da
Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp) da Fiocruz, e é creditado também às
pesquisadoras Ana Paula da Cunha, Ana Giselle dos Santos Gadelha, Christiane
Goulart Carpio, Rachel Barros de Oliveira e Roseane Maria Corrêa. Com a análise
de dados de abril e maio, o texto cita o mito da democracia racial para
comparar que uma ideia semelhante circulou quando foi repetido nos primeiros
meses que a pandemia seria “democrática”, representando o mesmo risco a todos
os que não fizessem parte dos grupos em que a doença tem mais chances de
apresentar suas formas mais graves, como idosos e doentes crônicos.
“Ocorre que a realidade da classe trabalhadora de baixa renda,
majoritariamente negra e moradora de territórios vulnerabilizados, é outra. São
predominantemente trabalhadores precarizados, que não têm o privilégio de ficar
em casa, em regime de trabalho remoto; que utilizam os transportes públicos
superlotados; têm acesso precário ao saneamento básico; e estão na linha de
frente do atendimento ao público no setor de serviços, incluindo os de saúde”,
descreve o ensaio.
Como resultado desse quadro, a análise mostra que, depois de chegar ao
país com viajantes das classes média e alta, o vírus se disseminou de modo a
afetar mais a população negra. Na Semana Epidemiológica 15 (4 a 10 de abril), a
população branca representava 73% das internações e 62,9% dos óbitos. Cerca de
um mês e meio depois, na Semana Epidemiológica 21, os dados mostram proporções
semelhantes de brancos e negros em relação às hospitalizações. Nos óbitos,
entretanto, a população negra passa a representar 57%, enquanto a branca
representa 41%.
O ensaio alerta que o fato de a proporção de negros ser mais expressiva
entre os óbitos que entre as hospitalizações “reforça a análise sobre a
dificuldade de acesso dessa população aos serviços de saúde, principalmente os
de maior complexidade, como os leitos de cuidados intensivos”. Além disso, a
pesquisa também aponta que há um alto percentual de ausência de registro de
raça e cor nos casos confirmados e óbitos por Covid-19, apesar de a Portaria n°
344 de 2017 do Ministério da Saúde determinar que essa informação deve ser
preenchida obrigatoriamente nos atendimentos em serviços de saúde. “A ausência
do registro dessa variável também revela o racismo, nos moldes institucionais,
pois impede que vejamos a verdadeira magnitude da exclusão da população negra”.
O texto acrescenta que “a pandemia apresenta sua face mais cruel” nas
periferias e favelas, e cita como um dos exemplos o bairro de Brasilândia, em
São Paulo, onde taxas de contaminação e óbitos superaram as regiões centrais da
cidade no fim de maio. Já em Fortaleza, no Ceará, a dinâmica de contágio se
intensificou em bairros pobres como Grande Pirambu e Barra do Ceará, depois da
disseminação em bairros ricos turísticos.
Cenário
As pesquisadoras relacionam esse cenário com o enfrentado pela população
negra nos Estados Unidos, país que também teve uma história marcada pela
escravização de povos africanos. O estudo cita a cidade de Chicago, onde os
negros representavam 29% da população e 70% das mortes por Covid-19 até a
primeira semana de abril.
“A população negra norte-americana, em comparação à branca, tem os
piores indicadores de saúde: menor expectativa de vida ao nascer, maior
proporção de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza, maiores taxas de
mortalidade infantil, maior taxa de mortalidade relacionada à diabetes, dentre
outros”, cita o ensaio, que aponta uma diferença: “O Brasil conta com um
sistema universal de saúde, com o pressuposto de cobrir as necessidades de
saúde de toda a população. Entretanto, também apresenta grandes disparidades
nos indicadores sociais, em face das desigualdades sociorraciais”.
O ensaio também traz dados do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) que mostram a desigualdade socioeconômica entre negros e
brancos no país, como o acesso ao saneamento básico, fundamental para os
cuidados de higiene necessários para prevenir a Covid-19: 12,5% dos negros e 6%
dos brancos vivem em locais sem coleta de lixo no país; 17,9% dos negros e e
11,5% dos brancos não tem abastecimento de água por rede geral; e 42,8% dos
negros e 26,5% dos brancos não possuem esgotamento sanitário por rede coletora
ou pluvial em casa.
Governo
Em setembro, uma portaria do governo federal instituiu
um incentivo financeiro para o fortalecimento das equipes e serviços da atenção
primária no cuidado à saúde de populações específicas, no valor total de R$
319,4 milhões. A verba é do Fundo Nacional de Saúde (FNS) se destina à
distribuição para municípios e Distrito Federal, em parcela única.
O incentivo financeiro tem a finalidade de apoiar a gestão local na
qualificação da identificação precoce, do acompanhamento e monitoramento de
populações específicas com síndrome gripal, suspeita ou confirmação da
Covid-19.
Em nota, o Ministério da Saúde explica que a portaria nº 344, de 1º de
fevereiro de 2017, prevê o preenchimento obrigatório do quesito raça/cor nos
formulários dos sistemas de informação em saúde. “Como se trata de uma variável
autodeclarada, caso não seja possível a categorização deste campo para
preenchimento, o notificador não pode deixar em branco. Para esses casos,
existe a opção de inserir a informação ‘ignorado’. Ressaltamos que essa opção é
apenas para as exceções, e não deve ser utilizado como regra. Os resultados de
testes diagnóstico para detecção da Covid-19, realizados por laboratórios da
rede pública, rede privada, universitários e quaisquer outros, em todo
território nacional devem ser, obrigatoriamente, notificados ao ministério
conforme a portaria 1.792/20 do Ministério da Saúde”.
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